sexta-feira, 15 de maio de 2020

Basta a cada dia o seu mal


Com todo o avanço da tecnologia e da ciência nesses últimos dois séculos, outra coisa também se “desenvolveu” com mais rapidez na sociedade: a ansiedade. Com isso, não quero dizer que só agora é que esse tipo de emoção desvirtuada veio à tona, haja vista que os relatos bíblicos de mais de 5.000 anos atrás atestam que o excesso de preocupação e cuidados para com a vida já estavam presentes naquela sociedade antiga. Prova disso foram as atitudes de Sara com Abraão ao não esperar o cumprimento da promessa de um filho, optando por gerar uma descendência fora do casamento. Moisés, com sua atitude temerosa em ser o portador da mensagem de libertação do povo, também demonstrou leves traços de uma ansiedade que sufoca e que tolhe a coragem para enfrentar as adversidades diante de si.

De fato, muitos desses irmãos do passado passaram por tais situações sem saberem o que de fato estava acontecendo psicologicamente consigo mesmos. A palavra que a Bíblia usa para diagnosticar essa preocupação exagerada quanto ao futuro chama-se pecado. E tem muito mais a ver não com o fato de apenas sermos surpreendidos temendo o que irá acontecer no amanhã, mas sim por esquecermos (ao menos por um instante) que o controle sobre o futuro não está em nossas mãos. Sara pecou por não confiar na promessa dada pelo anjo do Senhor, já que confiar na promessa é abandonar o controle que aparentemente está em nossas mãos. Quando agimos persistentemente como se o amanhã fosse uma consequência direta e única do que fazemos hoje, estamos sim pecando contra Deus. Tiramos Deus do banco do motorista e O colocamos no porta-malas, substituindo-O por nós mesmos na condução de nossas vidas.

Conquanto hoje a psicologia moderna possa tratar a ansiedade e seus transtornos como um tipo de doença emocional, ainda assim os cristãos não devem se esquecer que ela é tanto uma consequência da Queda como também as suas erupções num momento ou outro de nossas vidas nos causa outros males (“um abismo chama outro abismo”). O ponto que quero destacar não é que o fato de sermos ansiosos ou estarmos ansiosos é uma prova de falta de fé. (A maioria de nós conhece muitos irmãos que sofrem (ou já sofreram) desse tipo de mal emocional, conquanto demonstrem uma fé que, se possível fosse, transporia montes). A ansiedade na verdade não causa a falta de fé, antes a abala, a desestabiliza e em muitos casos a equivoca. O assunto que quero abordar é acerca das consequências que uma definição de status ou temperamento como meramente “ansioso”, beirando a acomodação da condição, acaba por gerar indivíduos vitimistas em vez de lutadores.

Alguns dos mais importantes pregadores da Bíblia no passado passaram por momentos de oscilação emocional. Lutero e Spurgeon talvez sejam os casos mais emblemáticos. Forte, avassaladora e muitas vezes incapacitante, ambos foram surpreendidos pela depressão e tiveram que lidar com ela até o fim de suas vidas, mas permanecendo no front dessa guerra interna, guerreando contra si mesmos. Algo curioso é que boa parte dos nossos antepassados também passaram por situações semelhantes de desequilíbrio emocional, numa época cuja mentalidade de hoje atribui equivocadamente como uma vida fácil simplesmente por (supõe-se) não se ter as “preocupações” que se tem hoje. Esse é um pensamento errôneo, já que não se leva em consideração que em cada época há os seus prazeres e dissabores, e, consequentemente, em cada um deles há a variável-gatilho para a preocupação exagerada quanto ao dia seguinte.

Por exemplo, em nossos dias é dada uma grande ênfase em garantir uma estabilidade futura, e nessa estabilidade está embutido o desejo de se ter uma casa própria, possibilidade de trocar o veículo anualmente, realizar viagens, dar aos filhos uma boa educação etc. Mas para se “garantir” tudo isso, o indivíduo moderno crê piamente que exaurir-se no trabalho vale a pena, ainda mais se, depois de conquistar todas essas coisas, ele puder dizer para si mesmo: “Tudo isso é resultado do MEU esforço e dedicação!”. O indivíduo moderno não percebe que ele demonstra estar no controle de sua própria vida, já que (palavras dele) tudo foi conquistado com o seu próprio braço. Com base nessa sua própria experiência, ele acaba supondo que nossos antepassados não eram tão preocupados com o dia futuro, já que não havia algum cuidado sobre viagens, bons colégios ou veículos. Era puro campo, cavalos e charretes.

No entanto, os antepassados conquanto não tivessem inquietações semelhantes às que temos hoje, ainda assim suas preocupações giravam em torno de: manter suas casas protegidas de ladrões e animais selvagens (o homem da casa assumia o caráter de protetor e guardião de sua família); ao saber da notícia de gravidez, havia uma expectativa se o bebê nasceria bem (a medicina era primitiva e não havia exames tão específicos como os que se tem hoje – o médico se limitava a apenas auscultar a grávida); os alimentos eram mais escassos etc. Por mais que hoje analisemos nossos antepassados de uma perspectiva autorreferente, ainda assim eles possuíam as suas ansiedades e preocupações da vida.

Aqui faz bem fazermos algumas considerações. Deus permite ao ser humano planejar prudentemente o que fará no dia seguinte, no entanto, o que Ele não tolera é o planejamento audacioso, egocêntrico e autorreferente. Qualquer planejamento deve levar em consideração que a consecução do que foi planejado só acontecerá se for da vontade do Senhor e se estiver condizente com Seus planos. Mas você pode perguntar: Como podemos saber se o que estamos planejando faz parte da vontade do Senhor a fim de não cairmos no erro da mania por controle? Espiritualmente falando: por meio da oração diária, apresentando diante de Deus suas limitações, lutas, temores e autorreferência, pedindo a Ele que o auxilie a vencer tais adversidades. Ser humilde para receber conselhos e críticas de pessoas que o conhecem são bastante úteis também para saber se o que você planeja é conveniente e justo, e não oriundo de um pensamento ou comportamento ansioso.

Jesus, em Mateus 6, nos orienta sobre o dever de não nos preocuparmos com o que haveremos de comer, beber ou vestir no dia de amanhã, já que Ele mesmo é quem provê tudo o que nós necessitamos. Ele provê o que nós precisamos, e não o que queremos. Quando o ser humano se preocupa exageradamente em acumular mais e mais riqueza com o propósito de garantir estabilidade à sua vida, ele inevitavelmente pode acabar perdendo de vista aquilo que é mais precioso para si mesmo, que é o seu relacionamento com Deus. Por isso que, na parábola do homem rico (cf. Lucas 12), Jesus chama esse homem de tolo porque ele se preocupou tanto em apenas aumentar suas posses e riquezas que acabou esquecendo do que era verdadeiramente importante: a salvação de sua própria alma.

A ansiedade que nos acomete sobre o que irá acontecer daqui a pouco tem esse poder de nos desvirtuar do Caminho, de tirar os nossos olhos do Alvo verdadeiro. É como quando fazemos compras naquelas lojas de departamento (estilo Lojas Americanas). Geralmente entramos para comprar um confeito, mas ao nos dirigirmos para o caixa, entramos naqueles corredores estreitos onde de cada lado há outras ofertas que nos saltam os olhos. Elas têm a função de nos fazer comprar mais do que precisávamos – muitas vezes nem fazia parte dos nossos planos. E, assim, em vez de pagarmos apenas pelo item de nosso desejo inicial, acabamos nos comprometendo financeiramente mais do que o previsto por algo que entrou na lista de desejos, mesmo contra a nossa vontade. Assim é a ansiedade: ela nos desvia do foco necessário de nossas vidas que é Jesus. Ela nos apresenta coisas que são contra a nossa vontade, mas que se tornam aparentemente necessárias para o nosso viver. Não demora muito para que aquilo que era aparentemente necessário torne-se essencial, em seguida, importante, e logo mais, vital. Dessa forma, a fé que temos no Salvador acaba sendo pouco a pouco desencaminhada do seu propósito real.

Há um problema que muitos enfrentam no que diz respeito à ansiedade que é o fato da apropriação do transtorno. Depois que a pessoa se desequilibra emocionalmente, caso não sendo tomada as medidas cabíveis para o enfrentamento desse “pecado-doença”, ela acaba se apropriando daquela condição, passando a se ver a partir de então como alguém ansioso. Essa condição torna-se agora parte de sua característica humana (ao menos é o que ela acredita), não demorando para ela se apresentar diante dos outros como uma pessoa ansiosa. Ela não mais se utiliza da expressão “luto contra a ansiedade”. Não! Ela basicamente entregou os pontos, deixou que a ansiedade tomasse conta de seu intelecto, personalidade e identidade. Por isso que para muitos que sofrem de ansiedade, eles já não mais demonstram vontade em querer superar tal condição ou continuar lutando contra ela; preferem tranquilizar suas consciências ao melhor estilo Gabriela: “Eu nasci assim, eu cresci assim e eu sou mesmo assim...”.

O indivíduo que sofre de ansiedade “exagerada” (falar isso é quase uma redundância, já que ao pé da letra ansiedade significa preocupação exagerada) tende a continuar com seu comportamento de autorreferência, beirando muitas vezes o egocentrismo, já que se alguém procura orientá-lo ou encorajá-lo a continuar lutando contra o que o acomete, a tendência dele será ou superestimar sua própria crise – dizendo que é difícil (senão impossível) superá-la ou que só quem passou por ela alguma vez na vida entende de fato o que ela é – ou subestimá-la – e, nesse caso, entra muitas vezes o “negacionismo” do que ele está passando, que acaba demonstrando não reconhecer que precisa da ajuda de outros para enfrentar sua luta.

Quando o indivíduo superestima a ansiedade, ele pode acabar caindo naquilo que o psiquiatra Theodore Dalrymple chama de sentimentalismo tóxico, cuja pessoa, por internalizar aquela condição de ansiedade, descamba num comportamento vitimista diante dos outros. No entanto, curiosamente apesar de ela demonstrar esse vitimismo, no fundo ela não quer ser ajudada a superar sua condição. O que ela quer de fato é apenas uma plateia para se sensibilizar do seu sofrimento. Não demorará muito para que ela se torne dependente emocionalmente dos outros, tendo em vista a incapacidade e deficiência permanente que ela atribui ao seu estado mental.

Para o cristão é sempre difícil notar quando alguém está agindo com autocomiseração ou não. O amor bíblico não permite fazer acepção de ninguém. Entretanto, é preciso entender que autocomiseração não é sinônimo de humildade. Muitas vezes, o indivíduo que sofre de ansiedade acaba relatando sua condição apenas com o objetivo de ser visto como alguém digno de pena (embora não queira ser ajudado), e não contrito ou reconhecedor da sua miserabilidade. O cristão precisa ter o discernimento para identificar quando está diante de um indivíduo, um irmão na fé, que sofre de ansiedade, não obstante esse irmão esteja agindo com autocomiseração em vez de humildade para reconhecer que precisa de ajuda na luta contra as suas crises emocionais.

A Bíblia nos orienta a suportar-nos uns aos outros – “é melhor dois do que um, pois se um cair, o outro pode levantá-lo.”. No entanto, quando o indivíduo que sofre de ansiedade não admite sua condição, o suportar torna-se uma empreitada ainda mais difícil. É como o viciado em drogas da família que diz poder parar a qualquer momento, mas nunca chega esse momento e tampouco reconhece o seu vício. O amor bíblico não é para ser conivente ou complacente com o pecado, a falha e os equívocos do irmão, mas sim para ser confrontador e exortativo quando se faz necessário. Muitas vezes, o indivíduo que sofre de ansiedade já se posiciona em autodefesa contra qualquer um que levante o tema da superação da ansiedade, e, assim, ele acaba procurando respostas, das mais mirabolantes, para justificar a sua atitude passiva frente à sua condição ansiosa. Expressões como “Você não entende o que é a ansiedade” ou “Quando você passar por ela, aí você pode falar dela” são as mais comuns. Mas, novamente, agir assim é se esquivar do problema e não querer sair dele.

A energia despendida pelo indivíduo que sofre de ansiedade seria mais bem empreendida se ele a utilizasse para perseverar na luta contra a sua condição. Muitas vezes, ele prefere criar todo o tipo de argumento para justificar a acomodação ao seu distúrbio do que se submeter aos conselhos ou à ajuda que outras pessoas lhe oferecem. E, conquanto ele aceite a princípio tal ajuda, a autodefesa uma vez ou outra surge quando ele opta por atentar a uma palavra ou expressão dita do que ao todo apresentado. Tudo isso, sim, sabemos que é fruto do desequilíbrio emocional que o acometeu, por isso é peremptoriamente necessário que o indivíduo procure ser lembrado de quem ele é enquanto imagem de Deus. Tendo em vista que o indivíduo acabou assimilando essa condição de ansiedade para si mesmo, tornando quase que inerente ao seu ser, somente quando substituímos essa condição assimilada por Aquilo que é de fato o importante e vital para o ser humano é que o indivíduo passará a ter uma vida longe da ansiedade, conquanto por ainda estar neste mundo possa ser acometido em um ou outro momento por um pensamento ansioso ou planejamento imprudente.

Timothy Keller diz que os ídolos falsos que se instalam no nosso coração só podem ser sobrepujados com a instalação de Algo maior do que eles mesmos. As preocupações psicológicas que temos podem acabar se transformando em ídolos do nosso viver. Para superar isso, somente quando nos apropriamos de Jesus como nosso Consolador, Pastor e Senhor da nossa vida é que seremos libertados desses ídolos que acabam causando em nós ansiedades, crises e transtornos. Enfatizo novamente que estar ansioso não é falta de fé, mas sim um desvirtuamento dela, e infelizmente pode acabar gerando idolatria caso passamos a nos ver meramente como alguém cuja ansiedade faz parte da nossa constituição humana e identitária.

Aos irmãos de fé que sofrem desse desequilíbrio emocional, saibam que podem contar sempre com um ombro amigo para lhes confortar e consolar por meio da Palavra, mas não esperem ouvir aquilo que querem ouvir, e sim o que precisam para continuar na sua luta contra a ansiedade e quiçá superá-la. O primeiro passo é sempre reconhecer a nossa mazela e que precisamos da ajuda do Alto. Choraremos quando for preciso chorar, mas nos alegraremos ao sermos lembrados de que a Esperança que precisamos para lutar contra tais emoções tóxicas se encarnou, morreu por nós e ressuscitou. E que essa Esperança também lutou contra e venceu as aflições do mundo. Afinal de contas, somos servos do Deus Altíssimo, preparados para combater o bom combate, concluir a carreira, sempre guardando a fé que Ele nos deu, e, no final, a coroa que herdaremos suplantará qualquer cruz (sofrimento, adversidade e luta) que aqui passarmos. Em suma: “Lancem sobre ele toda a sua ansiedade, porque ele tem cuidado de vocês.” (1 Pedro 5.7) e, “Mas eu, quando estiver com medo, confiarei em ti.” (Salmos 56.3).

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