Um
dos maiores desafios para o cristão é ser fiel ao seu Senhor. E isso passa não
apenas por exercer sua rotina diária e constante na oração e leitura da
Palavra, mas principalmente por ser uma testemunha de Cristo na vida pública,
perante estranhos e irmãos de fé. O crente é chamado a exercer um papel ativo
tanto no corpo de Cristo como na sociedade fora do templo. Não há como ele ser
dicotômico, tendo em vista sua inteireza como imagem do Criador.
Para
ser fiel e obediente ao seu chamado, o cristão precisa se tornar mais e mais
submisso ao seu Salvador. O caráter do Filho molda cada vez mais o caráter do
crente (ou, pelo menos, deveria). Com isso, as qualidades que o nosso Salvador
possuía, enquanto encarnado, deve ser também o alvo almejado pelo cristão. O
próprio Jesus, no início do capítulo 5 de Mateus, deu indícios de quais seriam
os atributos que seus discípulos deveriam possuir. As bem-aventuranças são o
retrato que se espera de todo aquele que se diz servo de Deus. Mansidão,
misericórdia, coração pacificador, humildade. Jesus apresenta à multidão o que
Deus requer do seu povo.
Não
são qualidades que nascem da noite para o dia nem mesmo pelo mero fato de
alguém já nascer dentro de um lar evangélico. A todo aquele que passa pelo
processo de conversão, tais requisitos deverão ascender na sua caminhada de fé.
Muitos de nós chegarão ao fim da caminhada sem desfrutar de todos esses
atributos, no entanto, o que devemos ter em mente não é que para entrar no gozo
do nosso Senhor deveremos possuir, tal como nosso Salvador, todas essas
qualidades, mas sim que devemos perseverar na busca por desenvolvê-las,
conquanto provavelmente ainda falharemos nesse processo e um ou outro requisito
ficará subdesenvolvido.
Dito
isso, é preciso lembrar que todo indivíduo possui temperamentos diferentes, e
que tais temperamentos serão moldados pelo próprio Deus a fim de atingir os
seus propósitos. No corpo de Cristo, apesar de todos possuirmos uma só fé e uma
só esperança, há crentes melancólicos, sanguíneos, fleumáticos e coléricos. Não
há como fugir dessas definições, apesar de elas por si mesmas não serem
suficientes para definir o ser humano, principalmente se ele for alguém
convertido a Jesus. Também não é correto falar que só há apenas uma dessas
características no indivíduo, na verdade, o que acontece é que todos possuímos
tais características, mas que, em cada um, terá uma mais pungente e que mais se
destaque na vida humana, sendo esta a que mais receberá influência do Espírito
do Senhor a fim de ser reequilibrada, tornando o homem um ser com domínio
próprio.
Quando
entendemos isso, passamos a exigir menos que o irmão se torne como nós, pois
nós não devemos ser o parâmetro para ninguém, apesar de termos de ser
testemunhas de Cristo no pensar e no proceder. Entretanto, o alvo deve ser
orientarmos as pessoas para que busquem se parecer mais com Cristo e não com
nós mesmos, tendo em vista que é dele que elas aprenderão a ser mansas e
humildes. Nós, como testemunhas de Cristo, somos apenas o reflexo de um espelho
ou de uma sombra. Se queremos que as pessoas sejam mais parecidas com Cristo,
então é imperativo que elas olhem para o Autor em vez dos personagens.
Curiosamente,
quando nos relacionamos no corpo de Cristo, vemos que há uma confusão sobre o
que é possuir domínio próprio, falar com mansidão, ser humilde etc. Geralmente,
isso parte de uma falta de compreensão sobre os mandamentos de Jesus e os
relatos de sua vida. Com isso, compartimentamos certas atitudes do Mestre,
chegando até mesmo a dogmatizar aquilo que não deveria ou rechaçar aquilo que é
também essencial.
Por
exemplo, quando olhamos para o ato de Jesus expulsar os cambiadores do pátio do
templo com um chicote na mão, alguns de nós podem encontrar nisso uma
incoerência no seu discurso sobre humildade, mansidão, amor e pacificação. No
entanto, quando nos aprofundamos no estudo, vemos que a atitude de Jesus se
coaduna sim com seu discurso, pois um atributo que o Mestre sempre fez questão
de deixar claro foi o zelo pela reverência devida ao Pai.
Quando
Jesus diz que devemos buscar em primeiro lugar o reino do céu e a justiça, ele
está dizendo que o que deve exercer primazia na vida do ser humano é o se
achegar mais e mais a Deus, e não desperdiçar nosso tempo com coisas
temporárias, fúteis e desnecessárias para o crescimento na fé e dependência do
Senhor. Buscar o reino do céu é se apropriar cada vez mais de uma mentalidade
que se importa com o avanço do Reino, que não tolera o pecado (apesar de agir
com amor para com o pecador) e que se dispõe como instrumento divino no corpo
de Cristo.
Mas
isso só é possível quando possuímos verdadeiro zelo pela causa do evangelho,
pela fé em Jesus e para que Deus seja reverenciado dignamente por aqueles que
dizem ser seus filhos, pois se os filhos não derem a importância devida a isso,
tampouco os que não são filhos darão. Na verdade, Deus requer mais dos seus
filhos do que dos que não o são.
Infelizmente,
hoje esse zelo tem sido interpretado no corpo de Cristo como legalismo, o que
até é compreensível em alguns casos, mas prejudicamos a caminhada de fé quando
generalizamos qualquer postura mais contundente ou rigorosa como meramente uma
atitude farisaica. Talvez por isso, condutas pecaminosas ou apenas defeituosas
têm sido mais toleradas do que confrontadas de forma apropriada. E confrontação
tem sido uma atitude bem negligenciada em muitas igrejas, mesmo que tenha sido
uma prática exercida pelo próprio Cristo, tanto com os seus discípulos como com
às multidões que o seguiam, e ensinada também pelo próprio irmão Paulo em suas
cartas.
Ser
assertivo é uma característica que faz parte do confronto ou exortação genuína.
Muitos irmãos confundem isso com agressividade, o que demonstra apenas um
equívoco, mas que se não for esclarecido, redundará sempre em omissão e
passividade diante de futuros erros. A assertividade tem muito mais a ver com
uma postura decidida, direta e resoluta. Curiosamente, por englobar tais
posturas, o indivíduo que fala assertivamente acaba sendo mal visto na
sociedade, e até mesmo no corpo de Cristo, justamente por que as pessoas
acabaram se acostumando no seu dia a dia com condutas mais voltadas para a
bajulação, lisonjas e pacifismo (obs.: o pacifista, adepto do pacifismo, é
diametralmente oposto ao pacificador. Enquanto um quer a paz a qualquer custo,
o outro sabe que por trás de toda busca por paz há um custo).
Algumas
pessoas acabam tendo também uma visão reducionista dos temperamentos. Para
elas, só existem dois espectros de condutas: numa ponta está o de fala dócil e
“humilde”, e na outra o de fala agressiva e orgulhosa. Para essas pessoas, não
há níveis ou escalas entre esses dois extremos. Se em determinado momento, você
se comunica de uma forma tempestiva e assertiva, a pessoa reducionista
automaticamente colocará você no lado dos arrogantes. Ela não compreende que
cada caso deve ser tratado conforme a relevância que se merece. Mesmo com
crianças, há momentos em que falamos com docilidade e amabilidade e há momentos
em que falamos com mais firmeza e seriedade.
Mesmo
o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (trazendo à memória novamente o episódio
da expulsão dos cambistas) tinha formas diferentes de se comunicar, dependendo
da gravidade do assunto, do momento específico e das pessoas a quem a mensagem
se destinava. Com alguns, ele era mais simples e dócil, com outros, firme e
resoluto, e ainda com mais alguns, contundente. Mas sempre sua conduta retratava
o amor e a mansidão característicos a ele.
Curiosamente,
no corpo de Cristo parece haver uma inclinação para um tipo de suavização do
amor. Parece que para muitos irmãos, o amor só é retratado se a comunicação com
o irmão faltoso for preponderantemente repleta de rodeios e divagações a fim de
não sinalizar que, de fato, se está fazendo uma exortação. É como se, na
concepção dessas pessoas, o amor não pudesse habitar onde há a assertividade e
clareza, quando, na verdade, os relatos bíblicos sobre confrontação demonstram
justamente o contrário. É só lembrarmos de Natã com Davi, Moisés e Arão, Daniel
e Nabucodonosor, até chegarmos ao próprio Jesus com Pedro e os demais
discípulos.
Se
quisermos ser bíblicos e verdadeiros discípulos de Cristos, precisamos compreender
que assuntos sérios devem ser tratados seriamente, e que o amor é retratado por
meio da confrontação mansa, porém assertiva, do problema. Não podemos exigir
que sermos salvos da queda no penhasco por um leão seja semelhante a ser salvo
por um gatinho. A pata do rei-felino é muito mais pesada que a do bichano, pode
até ser que cause alguns arranhões, mas é certo que a maneira dele trará muito
mais garantias de voltarmos a viver tranquilos, embora convivamos com as marcas
daquilo. Podemos não ter gostado da maneira como ele nos salvou, mas o que
importa é que ainda nos encontramos vivos e vigilantes para não nos
aproximarmos novamente de qualquer abismo.
Como corpo de Cristo,
temos que deixar de ser hipersensíveis quanto ao que ouvimos e mais objetivos
quando falamos. Sem isso, nos tornaremos cristãos que estarão mais preocupados
em temer e/ou agradar os homens do que a Deus. Seremos tolerantes ao erro e
intolerantes à correção do erro. Enfim, teremos transformado a disciplina
evangélica numa mera sessão terapêutica de autoajuda e a igreja num novo safe
space, onde ninguém pode exortar ou aconselhar o outro, por achar que só o
“amor” superficial resolve tudo. Crer que nos convertemos a um “Jesus” bacana
fatalmente nos levará a agir como um banana. Entretanto, sinceramente, nosso
Jesus é infinitamente mais do que aquilo (bacana) e requer de nós
incomensuravelmente mais do que isso (agir como um banana).