Volta
e meia nos deparamos com situações conflitantes na nossa vida cristã. A escolha
entre fazer o certo e o errado é confrontada pela orientação da lei bíblica.
Não é de surpreender quando nos pegamos, tal como os fariseus, agindo mais por
legalismo do que por coerência reflexiva. E, assim, acabamos exigindo que
aqueles que possuem a fé bíblica vivam uma vida baseada mais na religiosidade
dos mandamentos do que no raciocínio libertador da graça. Tomemos como exemplo
o quinto mandamento: “Honra a teu pai e tua mãe(...).” (Êxodo 20.12).
Esse
mandamento é muito utilizado, de forma ressentida e inconsequente, por diversos
pais irresponsáveis, abusadores emocionais ou tirânicos, a fim de convencer os
filhos de que são eles que agem errado por não realizarem todos os desejos de
seus progenitores (ou por não seguirem todos os seus mandados) de uma maneira
praticamente irrefletida e cega.
Curiosamente,
o mandamento para honrá-los não lhes dá um cheque em branco para agirem com
seus descendentes da forma como bem quiserem, achando que o simples fato de
haver uma relação pai-filho já é suficiente para que o mandamento seja cumprido
à risca. Há outros versículos que balizam como deve ser a atitude dos pais para
com seus filhos. Colossenses 3.21 (“Pais, não irritem seus filhos, para que
eles não se desanimem”) é um deles. Apesar de o versículo anterior (v.20)
orientar os filhos para que “obedeçam a seus pais em tudo, pois isso agrada
ao Senhor”, voltamos a questionar se isso é dar um cheque em branco para os
pais agirem com seus filhos como bem lhes der na telha, sem se preocuparem com
os danos que isso causará a eles. Creio que não.
Um
pai deveria ter como referência de paternidade o próprio Deus Pai, na forma sapiencial
como Este lida e cuida de sua criação. E um filho deveria possuir como
referencial o próprio Filho de Deus (Jesus Cristo), na maneira como Este se
relaciona com o Pai, na sua submissão e entrega aos propósitos sábios do Pai
para a redenção e consumação. É sempre bom recordar que tomá-Los como orientação
não é esperar que todos os atos no relacionamento humano pai-filho automaticamente
sejam perfeitos, de um para com o outro – afinal, ainda estamos neste mundo,
sofrendo as intempéries do próprio mal que o circunda –, mas isso não deve ser
motivo para descartar tal referencial. O que Jesus requer de nós é mais perseverança
na caminhada do que de fato perfeição irrestrita.
Outra
passagem que até abrange esses dois versículos anteriores é Efésios 6.1-4 (“Filhos,
obedeçam a seus pais no Senhor, pois isso é justo. ‘Honra teu pai e tua mãe’,
este é o primeiro mandamento com promessa: ‘para que tudo te corra bem e tenhas
longa vida sobre a terra’. Pais, não irritem seus filhos; antes criem-nos
segundo a instrução e o conselho do Senhor.”).
Aqui
é notória a responsabilidade que os pais devem ter para com seus filhos: criá-los
na instrução e conselho do Senhor. Alguns poderiam dizer que a honra devida,
então, só deveria importar se a família for toda de crentes – pais e filhos. No
entanto, não é bem assim. Mesmo que só o filho seja crente, enquanto os pais
não, ainda assim é dever dele obedecer a tal mandamento do honrar, mesmo que
não tenha sido criado na instrução e conselho do Senhor. O que podemos
questionar é se esse filho tem de obedecer a mandados que afrontam claramente
sua vida cristã, como, por exemplo, o pai obrigar o garoto a perder a virgindade
num bordel quando completar 18 anos, ou dar o primeiro gole no copo de cerveja,
ou não contar para sua mãe sobre o adultério do pai etc. Creio que também
nesses casos a obediência cega ao quinto mandamento não se aplica.
Há
uma situação em que se enquadra também aqueles tipos de pais que são conhecidos
como abusadores emocionais. Geralmente são os que se utilizam de comportamentos
emotivos, beirando o vitimismo e autocomiseração muitas vezes, para pleitearem
determinadas condutas e posturas dos filhos. E quando estes não atendem à
insistência, os progenitores logo apelam para o cumprimento cego do mandamento.
Digamos
que, por exemplo, uma filha vai se casar, e o seu irmão não dá a mínima para ela
e tampouco para o seu futuro cunhado. Pelo contrário, o irmão passa a
denegri-los e ridicularizá-los para toda a família. E por mais que a irmã, assim
como o noivo, procurem-no para pedir que ele pare com tais atitudes, então, ao
não obter sucesso, chega uma hora em que ela clama a seu pai para que ele possa
interceder na situação. Surpresa, a irmã ouve de seu pai que o irmão não cometeu
erro nenhum, pelo contrário, ele diz ao pai que foi a irmã e o cunhado quem
estavam falando mal dele. O pai então toma as dores do filho e se coloca
totalmente indiferente e distante de sua filha e genro. Essa relação se tornou
agora fragilizada. A filha então passa a se dedicar ao seu relacionamento, tornando-se
também indiferente à família de origem, já que seu pai não agiu de forma sábia.
Depois de um tempo, o pai planeja visitá-la, mas faz esses planos querendo
levar o irmão dela, mesmo esse irmão nunca se desculpando pelo mal-estar que
causou e tampouco se mostrando arrependido. Ela, então, até tolera que o pai a
venha visitar, mas sem o irmão, enquanto este não pedir formalmente perdão e
reconhecer o erro que cometeu. O pai, então, ao ver que isso não vai acontecer
(e continuando ainda a proteger o filho) começa a se vitimizar perante os
parentes e os antigos amigos da filha, forçando, com isso, que ela, então,
possa ir visitá-lo de qualquer jeito, mesmo a situação ainda sendo totalmente
fragilizada e, no momento, irreconciliável por conta do mal estar causado pelo
irmão e da falta de sabedoria do pai.
A
questão que levantamos é: A filha (que agora se dedica à sua nova família, com
seu marido) está desonrando o pai por não querer visitá-lo? Se, com tudo o que
foi exposto, ainda assim respondermos sim, então isso só mostra que nossa mentalidade,
que dizemos ser cristã, está mais encharcada de legalismo farisaico do que raciocínio
coerente.
O
que acontece é que muitos se atentam ao simples cumprimento de um preceito como
se fosse isso o que torna alguém cristão ou não, sem levar em conta todo o contexto,
e, assim, tomam o assento de juiz e, se possível, carrasco. Muitos pais, por
exemplo, que são líderes de igrejas possuem lares desequilibrados, em flagrante
delito com a orientação de “governarem bem sua própria casa e terem seus
filhos sujeitos a si...ter filhos crentes que não sejam acusados de
libertinagem ou de insubmissão” (1Tm 3.4; Tito 1.6), mas nem por isso
deixam de pastorear suas igrejas ou conduzir seus ministérios, ainda que tendo criado
filhos no Senhor, estes tenham preferido seguir o caminho do mundo. Já imaginou
se fôssemos aplicar, a quem almeja as funções de bispo, presbítero e diácono, o
legalismo farisaico dos pais que exigem honra a qualquer preço, levando em
consideração se realmente os filhos dos postulantes são, de fato, crentes que não
são acusados de todo tipo de comportamento irresponsável na escola, na vizinhança
ou na própria igreja? Creio que muito pastor e líder teria que ser deposto de
seu cargo.
Gary Kinnaman, em seu
livro Crendices de crentes, sintetiza bem o perigo do legalismo: “Pode-se
ser teologicamente correto e religiosamente compulsivo sobre obediência às
regras – e se perder no resto.” Ou seja, é provável que quando damos muita
ênfase para que determinadas leis bíblicas sejam obedecidas de forma cega e
irrefletida, estejamos mais interessados em aplacar as exigências do nosso
próprio ego, e não de realizar a vontade de Deus. E é nisso que muitos pais,
cristãos, têm se equivocado quando requerem o cumprimento irrestrito de seus
filhos ao quinto mandamento sem, contudo, eles mesmos refletirem se estão
agindo de uma forma que realmente mereça honra e reverência.